Qual a conduta no atendimento de pacientes imigrantes, em situação de vulnerabilidade social, que desconheçam o idioma português?

| 20 abril 2016 | ID: sofs-23432
Solicitante:
CIAP2: ,
DeCS/MeSH: , , ,
Graus da Evidência:

Seguindo o princípio constitucional e doutrinário do SUS de universalidade do acesso à saúde1, o primeiro ponto a se esclarecer é que toda a população imigrante tem direito a atenção à saúde de maneira humanizada e qualificada. Além disso, no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS), a competência cultural é um aspecto derivativo que envolve o reconhecimento das necessidades de diferentes grupos populacionais, de acordo com suas características étnicas, raciais e culturais, entendendo suas representações sobre o processo saúde-doença2.
Existe atualmente a dificuldade da equipe em relação à compreensão dos imigrantes, como haitianos, senegaleses e recentemente os sírios, que tem dificuldade em falar português. Na tentativa de diálogo, orienta-se falar pausadamente, olhando em direção ao paciente.
Se a linguagem falada for difícil para usuário e profissional, pode-se pensar em outras formas de comunicação, como gestos, mímicas e desenhos – principalmente na hora da prescrição dos medicamentos. Uma ideia que funciona bem com pacientes analfabetos e que pode ser adaptada a este caso é a utilização de pictogramas, que são instrumentos de comunicação que associam figuras e conceitos de forma concisa e esquematizada com o intuito de transmitir de forma clara, ágil e simples, informações, advertências, instruções e prescrições3. Como exemplo, desenhar sol e lua, para definir dia e noite, trabalhar com desenho do relógio, trabalhar mostrando o calendário, desenhar a quantidade de comprimidos. Além dos pictogramas, ter à disposição um dicionário pode ser útil nestas situações.
Em um artigo que trata da experiência de uma equipe de SF de São Paulo na atenção a imigrantes bolivianos4 observou-se que a mesma dificuldade dos profissionais de saúde em não compreender as queixas dos usuários, tiveram os pacientes em não entender as orientações dos profissionais. Para melhorar a comunicação, esta ESF investiu na contratação de ACS bolivianos, montaram cartilhas sobre os principais temas de saúde em espanhol, também fizeram uma lista de expressões em espanhol mais comuns como “bom dia”, “boa tarde”, “o que você está sentindo” para que a equipe conseguisse iniciar uma comunicação com os usuários. Além disso, como o número de bolivianos é muito grande, acredita-se que mais de 10 mil, existe uma rádio comunitária em espanhol, em que a equipe participa dando orientações de saúde.
Esse trabalho pode ser potencializado se for realizado de maneira interdisciplinar, articulado à Assistência Social. Tendo um levantamento do número de pessoas imigrantes e das principais dificuldades encontradas para seu atendimento, será mais fácil propor ações intersetoriais para a transposição das dificuldades. Por exemplo, pode-se pensar em conseguir apoio para que a equipe aprenda algumas expressões do idioma falado pelos imigrantes, ou conseguir que os mesmos tenham aulas de português básico. No município de Encantado / RS, houve parceria com a Igreja Católica para realização de aulas de português gratuitas para os imigrantes haitianos5.
É importante lembrar que além de ações que possam traduzir as prescrições e posologia dos medicamentos, a aprendizagem da língua pelo imigrante não ocorre de forma unilateral, não basta apreender os signos, mas traduzi-los e ressignificá-los, criando um encontro entre as línguas e as culturas. A linguagem representa mais que um veículo de comunicação, demonstra a história, cultura, crença e o sistema de valores de um povo e uma nação6.


A ferramenta de avaliação da APS (PCAT – Primary Care Assessment Tool) é um instrumento indicado para uso nas comunidades, para avaliar tanto a obtenção dos aspectos exclusivos da atenção primária (atenção no primeiro contato, longitudinalidade, integralidade da atenção e coordenação da atenção) quanto os aspectos derivativos (centralização na família, orientação para a comunidade e competência cultural). O instrumento tem questões voltadas para os profissionais das unidades de saúde e também para os usuários do sistema, o que permite examinar a concordância entre pessoas e seus profissionais de atenção à saúde a respeito do alcance da atenção primária. Neste instrumento as questões que avaliam a competência cultural são2:

No caso do Haiti, país com história marcada por guerras civis e considerado o mais pobre da América, após o terremoto de 2010 muitas pessoas e famílias sobreviventes tiveram perdas físicas e emocionais que reduziram a expectativa de vida e motivaram a população a imigrar para outros países em busca de melhores condições de vida7.  Estas pessoas que chegam aqui estão se aventurando a milhares de quilômetros de suas famílias, suas casas e suas culturas na tentativa de sobreviver, trabalhar e muitas vezes sustentar a família que ainda reside no Haiti. Estando em uma posição de poder e supremacia, os brasileiros, que residem em seu país encontram-se em uma posição de hegemonia social e cultural. Essa posição muitas vezes gera um processo de colonização e domínio do conhecimento por parte dos profissionais, que pode ser visualizado na imposição da aprendizagem da língua portuguesa pelos imigrantes.  Partindo-se dessa premissa sugere-se que ocorra a troca de elementos culturais diferentes e que a língua portuguesa possa aos poucos ganhar signos, conceitos de saúde e doença provenientes de outras culturas, expressos pela língua espanhola, kreol e francês, enriquecendo a cultura brasileira e ampliando o potencial de vínculo e a longitudinalidade da atenção perante os imigrantes.

Bibliografia Selecionada:

  1. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 35. ed2012. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/15261/constituicao_federal_35ed.pdf?sequence=9.>. Acesso em: 20 abr. 2016.
  2. Starfield, Barbara . Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. 2002. Brasília, UNESCO, Ministério da Saúde. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_primaria_p1.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.
  3. MEDEIROS, Giovanna Christinne Rocha de et al. Pictogramas na orientação farmacêutica: um estudo de revisão. Revista Brasileira de Farmácia, Rio de Janeiro, 2011, 92(3):96-103. Disponível em: <http://www.rbfarma.org.br/files/rbf-2011-92-3-3.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.
  4. AGUIAR, Marcia Ernani de, MOTA, André. O Programa Saúde da Família no bairro do Bom Retiro, SP, Brasil: a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde. Interface (Botucatu) . 2014, 18(50):493-506. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v18n50/1807-5762-icse-1807-576220130040.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.
  5. WELTER, Paulo. Município de Encantado – RS: Curso de Português para Haitianos. 2015. Disponível em: <http://haitianosbrasil.blogspot.com.br/search?q=curso+de+portugues>. Acesso em: 20 abr. 2016.
  6. AGUIAR, Cleonete Martins de; COTINGUIBA, Marília Lima Pimentel. A língua como fator de inserção de haitianos no mercado de trabalho em porto velho. Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade – Igarapé, Porto Velho, 2015, 1(5):1-21. Disponível em: <http://www.periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/viewFile/1318/1394>. Acesso em: 20 abr. 2016.
  7. MAGALHÃES, Luís Felipe Aires. O Haiti é Aqui: Sub Imperialismo Brasileiro e Imigrantes Haitianos em Santa Catarina. Disponível em: <http://anpocs.org/index.php/papers-38-encontro/gt-1/gt23-1/9036-o-haiti-e-aqui-sub-imperialismo-brasileiro-e-imigrantes-haitianos-em-santa-catarina/file>.Acesso em: 20 abr. 2016.